Lá em 2015, a gente viu As Bahias e a Cozinha Mineira lançando seu primeiro álbum, Mulher. Confessa aí: em algum momento daquele ano, você certamente se pegou ouvindo faixas como Apologia Às Virgens Mães ou Uma Canção Para Você…
Agora, em 2019, o grupo formado por Assucena Assucena, Raquel Virgínia e Rafael Acerbi se prepara para o lançamento de seu terceiro álbum. Eles seguem na linha de frente da luta por questões de gênero no país, fortalecendo a trilha sonora da luta pela diversidade, e entregam na próxima sexta-feira (25) o primeiro aperitivo do que vieram cozinhando em estúdio desde o lançamento do maravilhoso Bixa, em 2017.
Nós quisemos saber o que esperar, por telefone, batemos um papo com Raquel e Rafael. A conversa rendeu e além do novo trabalho, eles também nos contaram um pouco sobre o que vem percebendo na música brasileira, sobre a recente experiência das duas vocalistas à frente de um programa de TV, e claro, sobre a cena LGBTQ+ no País.
Um daqueles papos deliciosos, vem ler!
Papelpop: Vocês lançam na próxima sexta-feira o single Das Estrelas, uma faixa que fala de violência LGBTQ…
Raquel: Isso! Antes de mais nada, esta é uma faixa romântica. Já no clipe é onde a violência LGBTQ+ aparece. Estamos muito felizes de lançar um trabalho como esse porque nós acreditamos que vivemos um momento muito significativo para o que temos discutido, digo, para além das polêmicas que temos assistido de janeiro para cá envolvendo questões de gênero e que vão desde piadas a manifestações públicas. Situações que claramente querem nos apagar e que buscam cumprir esse papel como genocidas. Desta forma, nesse paradigma de ter uma música romântica e um clipe com essa discussão, nós nos questionamos sobre o direito das pessoas trans de serem românticas. Elas podem? Ou vamos estar sempre no lugar da violência e a pornografia, sabe?
Ouvi dizer que o novo álbum está mais pop. Em termos de som, o que já dá para adiantar?
Rafa: Estamos saímos do espectro independente pra trabalhar com uma gravadora. Então fizemos uma compilação de musicas pra tentar achar uma narrativa. Nós já temos as canções, mas ainda estamos no processo de entender esteticamente como será esse álbum. Sobre Das Estrelas, primeira musica que a gente vai lançar, temos muitas apostas, é uma amostra do que viemos trabalhando sonoramente e claro, para sondar o impacto que isso terá no público. Neste novo trabalho temos conseguido manter a identidade do grupo intacta e ainda assim caminhar provocando, inventando um novo som. Acreditamos que até o fim do primeiro semestre as pessoas já vão poder ter acesso.
No próximo dia 29 de janeiro se celebra o Dia da Visibilidade Trans. A escolha desse single já era algo idealizado ou se deu por conta desse momento complicado?
Raquel: Foi uma junção de fatores. A gente já vinha discutido tanto a musica, quanto o seu lançamento. O clipe e toda a conjuntura que o envolve enveredou naturalmente pra esse caminho e eu acho que esse momento é muito significativo para lançarmos algo assim. Na nossa opinião, é o instante perfeito para uma música como essa aparecer e eu acho que ela vai contribuir muito pro debate. Esperamos que ela ganhe a projeção merecida na discussão, por que nem sempre temos, artisticamente falando, a possibilidade de mostrar o quanto a nossa luta LGBTQ+ precisa de mais repertório. E é este objetivo da faixa, contribuir na luta.
Vocês acham que é natural que o artista use a arte como instrumento político, para contestar?
Raquel: Eu acho que o artista sempre teve o papel de trazer luz e catalisar o debate. Tudo bem que ele também sempre esteve em uma posição de entretenimento, temos essa função, mas temos igualmente o papel de fazer a sociedade debater e questionar temas diversos. Então acho que existe sim uma responsabilidade tanto social, quanto artística, quanto estética de fazer com que as pessoas questionem os seus próprios limites e os ultrapassem, principalmente quando isso fere a dignidade alheia, o que vem acontecendo com a comunidade LGBTQ+ no Brasil. Nós, como artistas pertencentes a esse grupo, temos a obrigação de expor debates e pautar a sociedade, para que as pessoas possam rever suas posturas transfóbicas, homofóbicas, lesbofóbicas…
Rafa: É fundamental, até porque a arte tem um poder de convencimento e de acesso às pessoas que é muito diferente de um “textão” ou algo mais prolixo. O serviço do artista, de poder oferecer leituras diferentes de uma sociedade pras pessoas, é um fator que nós, das Bahias e a Cozinha Mineira, sempre estivemos de acordo.
Por falar nisso, vocês fizeram uma série de ações nas ruas para promover a pauta da violência. Isso continua com o lançamento do disco?
Raquel: Sim! Fizemos uma campanha e agora, nesta quarta-feira (23), voltamos com ela. O propósito exato dessas ações você e o público vão entender quando o clipe sair, na sexta (25). Nele estão as respostas para a conexão traçada entre as nossas saídas às ruas, as perguntas que propusemos nos atos, e o que encerra o clipe. A gente é muito conceitual (risos).
No fim do ano passado vocês estrearam um programa de TV, (ABZ)! Mesmo tendo familiaridade com as câmeras, deu para sentir aquele frio na barriga?
Raquel: Claro! Primeiro que a gente entrevistou muitos ídolos, muitos artistas que éramos fãs. Foi muito interessante estar diante de figuras como Samuel Rosa, Xênia França, Luedji Luna, Odar José, Céu, Anelis Assumpção… uma galera. A gente entrevistou personalidades super relevantes pra musica e pra canção brasileira e estivemos nesse lugar, de apresentadoras. Então super pesquisamos, fizemos a lição de casa, que era muito importante neste primeiro momento. Assim como a Assucena, não me coloquei como apresentadora e entrevistadora, agimos como se estivéssemos conversando com colegas nossos, sabe? Mesmo assim, é um baita frio na barriga. Vocês, repórteres, ralam! (risos)
Parte do processo de escolha dos convidados partiu de vocês, parte não. Eu assisti a alguns episódios e notei que os papos eram bem filosóficos. O processo de pensar a música é tão importante quanto fazer?
Raquel: Sim! A música é certamente a atividade que levo com mais rigor na vida. Pensar a música, compor, cantar, construir um show, um álbum, requer disciplina e é uma atividade que, apesar de nem sempre conseguirmos transparecer o que desejamos, está sempre voltada para um senso de recriar, reciclar, inovar… e esse é o jeito de fazer músicas das Bahias: extremamente conceitual, filosófico, dono de uma natureza própria. Nós cursávamos História, Filosofia na USP, então é da nossa natureza gostar de discutir.
Rafa: Isso, é preciso destrinchar mesmo. Com certeza pensar tem o mesmo peso que fazer, até dentro do processo de construção de arranjo, de esmiuçar de fato tudo o que temos feito, para conseguir chegar numa consoante. Eu como guitarrista, arranjador, me preocupo muito com as paisagens sonoras e, ir atrás da minucia da minucia é super importante pra transmitir o que a gente tá pensando. Aquele processo de gastar tempo lendo, estudando e pesquisando que adquirimos ainda na faculdade nos formou e continua ainda hoje.
O programa trouxe somente nomes da música brasileira e a gente vê uma porção de artistas surgindo. Quem dessa nova leva vocês tem ouvido neste momento?
Raquel: Olha, eu tenho ouvido muita Luedji Luna, Xênia França…
Rafa: A gente tá num momento muito frutífero. Já eu ouço muito Fraçois Moleca, Ava Rocha, Negro Léo, Anelis Assumpção. São discos de muita qualidade nesse momento e o legal é que temos uma infinidades de artistas que sempre recorremos em busca de inspiração. Temos sorte de sermos amigos dessas pessoas e viver esse processo de troca. É algo muito gratificante.
Outro dia vi a Elza Soares dizendo que achava o máximo ver a galera jovem nos shows. Vocês acham que isso é um indício de que a música brasileira tem chegado cada vez mais longe, que tem se tornado mais abrangente?
Rafa: Olha, eu não sei. Eu acho que a Elza é uma luz no fim desse túnel, porque ela é uma das maiores cantoras que nós temos, uma rainha da voz, da canção brasileira. Certamente uma das artistas mais atentas para o que acontece na musica jovem. Como artistas da MPB, a gente vê como ainda é difícil conseguir vencer certas barreiras para chegar até as pessoas. Mesmo agora com uma gravadora, ainda são muitos obstáculos para que todo esse acesso seja mais democrático, que possa chegar ao público de uma maneira mais horizontal. Por outro lado, eu acho que temos muitos caminhos possíveis, muita gente fazendo coisas boas… o meio em que isso é disseminado é o que faz a diferença, sejam nos setores mais independentes, nas rádios, na TV… é um trabalho de resistencia e ser artista é isto: conseguir criar mecanismos para que o seu trabalho aconteça.